quinta-feira, 11 de março de 2010

Seria Socrátes um Buda, um Desperto, Um iluminado parte II

Trechos do Fédon de Platão que conta o último dia de vida de Sócrates:

Embora os homens não o percebam, é possível que todos os que se dedicam
verdadeiramente à Filosofia, a nada mais aspirem do que a morrer e estarem mortos. Sendo isso um fato, seria absurdo, não fazendo outra coisa o filósofo toda a vida, ao chegar esse
momento, insurgir-se contra o que ele mesmo pedira com tal empenho e em pós do que
sempre se afanara..Morrer, então, consistirá em
apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertarse
do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa?
Não; é isso, precisamente, respondeu.
Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo
ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja
próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e
beber?
De forma alguma, Sócrates, replicou Símias.
E como relação aos prazeres do amor?
A mesma coisa.
E os demais prazeres, que entendem com os cuidados do corpo? És de parecer que
lhes atribua algum valor? A posse de roupas vistosas, ou de calçados e toda a sorte de
ornamentos do corpo, que tal achas? Eles os aprecia ou os despreza no que não for de
estrita necessidade?
Eu, pelo menos, respondeu, sou de parecer que o verdadeiro filósofo os despreza.
Sendo assim, continuou, não achas que, de modo geral, as preocupações dessa pessoa,
não visam ao corpo, porém tendem, na medida do possível, a afastar-se dele para
aproximar-se da alma?
É também o que eu penso.
Nisto, por conseguinte, antes de mais nada, é que o filósofo se diferencia dos demais
homens: no empenho de retirar quanto possível a alma na companhia do corpo.
Evidentemente.
Essa é a razão, Símias, de, na opinião da maioria dos homens, não merecer viver o
indivíduo a quem nada disso é agradável e que não se importa com tais práticas, por acharse
muito mais perto da condição de morto e por não dar a menor importância aos prazeres
alcançados por intermédio do corpo.
Tens razão.
X – E como referência à aquisição do conhecimento? O corpo constitui ou não
constitui obstáculo, quando chamado para participar da pesquisa? O que digo é o seguinte:
a vista e o ouvido asseguram aos homens alguma verdade? Ou será certo o que os poetas
não se cansam de afirmar, que nada vemos nem ouvimos com exatidão? Ora, se esses dois
sentidos corpóreos não são nem exatos nem de confiança, que diremos dos demais, em tudo
inferiores aos primeiros? Não pensas desse modo?
Perfeitamente, respondeu.
Então, perguntou, quando é que a alma atinge a verdade? É fora de dúvida que, desde
o momento em que tenta investigar algo na companhia do corpo, vê se lograda por ele.
Tens razão.
E não é no pensamento – se tiver de ser de algum modo – que algo da realidade se lhe
patenteia?
Perfeitamente.
Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem a vista nem o
ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada ao máximo em si mesma,
dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele,
e esforça-se por apreender a verdade.
Certo.
E não é nesse estado que a alma do filósofo despreza o corpo e dele foge, trabalhando
por concentrar-se em si própria?
Evidentemente.
E com relação ao seguinte, Símias: afirmaremos ou não que o justo em si mesmo seja
alguma coisa?
Afirmaremos, sem dúvida, por Zeus.
E também o belo em si e o bem?
Também.
E algum dia já percebeste com os olhos qualquer deles?
Nunca, respondeu.
Ou por intermédio de outro sentido corpóreo? Refiro-me a tudo: grandeza, saúde,
força e o mais que for, numa palavra: à essência de tudo o que existe, conforme a natureza
de cada coisa. É por intermédio do corpo que percebemos o que neles há de verdadeiro, ou
tudo se passará da seguinte maneira: quem de nós ficar em melhores condições de pensar
em si mesmo o mais exatamente possível o que se propõe examinar, não é esse que estará
mais perto do conhecimento de cada coisa? Ou não?
Perfeitamente.
E não alcançará semelhante objetivo da maneira mais pura quem se aproximar de
cada coisa só com o pensamento, sem arrastar para a reflexão a vista ou qualquer outro
sentido, nem associá-los a seu raciocínio, porém valendo-se do pensamento puro, esforçarse
por apreender a realidade de cada coisa em sua maior pureza, apartado, quanto possível,
da vista e do ouvido, e, por assim dizer, de todo o corpo, por ser o corpo fator de
perturbação para a alma e impedi-la de alcançar a verdade e o pensamento, sempre que a
ele se associa? Não será, Símias, esse indivíduo, se houver alguém em tais condições, que
alcançara o conhecimento do Ser?
Tens toda a razão, Sócrates, respondeu Símias.
XI – Por tudo isso, continuou, é natural nascer no espírito dos filósofos autênticos
certa convicção que os leva a discorrer entre eles mais ou menos nos seguintes termos: Há
de haver para nós outros algum atalho direto, quando o raciocínio nos acompanha na
pesquisa; porque enquanto tivermos corpo e nossa alma se encontrar atolada em sua
corrupção, jamais poderemos alcançar o que almejamos. E o que queremos, declaremo-lo
de uma vez por todas, é a verdade. Não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta,
pela necessidade de alimentar-se, sem falarmos nas doenças intercorrentes, que são outros
empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupidez, imaginações de toda a
espécie e um sem número de banalidades, a tal ponto ele nos satura, que, de fato, como se
diz, por sua causa jamais conseguiremos alcançar o conhecimento do quer que seja. Mais,
ainda: guerras, batalhas, dissensões, suscita-as exclusivamente o corpo com seus apetites.
Outra causa não têm as guerras senão o amor do dinheiro e dos bens que nos vemos
forçados a adquirir por causa do corpo, visto sermos obrigados a servi-lo. Se carecermos de
vagar para nos dedicarmos à Filosofia, a causa é tudo isso que enumeramos. O pior é que,
mal conseguimos alguma trégua e nos dispomos a refletir sobre determinado ponto, na
mesma hora o corpo intervém para perturbar-nos de mil modos, causando tumulto e
inquietude em nossa investigação, até deixar-nos inteiramente incapazes de perceber a
verdade. Por outro lado, ensina-nos a experiência que, se quisermos alcançar o
conhecimento puro de alguma coisa, teremos de separar-nos do corpo e considerar apenas
com a alma como as coisas são em si mesmas. Só nessas condições, ao que parece, é que
alcançaremos o que desejamos e do que nos declaramos amorosos, a sabedoria, isto é,
depois de mortos, conforme nosso argumento o indica, nunca enquanto vivermos. Ora, se
realmente, na companhia do corpo não é possível obter o conhecimento puro do que quer
que seja, de duas uma terá de ser: ou jamais conseguiremos adquirir esse conhecimento, ou
só o faremos depois de mortos, pois só então a alma se recolherá em si mesma, separada do
corpo, nunca antes disso. Ao que parece, enquanto vivermos, a única maneira de ficarmos
mais perto do pensamento, é abstermo-nos o mais possível da companhia do corpo e de
qualquer comunicação com ele, salvo e estritamente necessário, sem nos deixarmos saturar
de sua natureza sem permitir que nos macule, até que a divindade nos venha libertar. Puros,
assim, e livres da insanidade do corpo, com toda a probalidade nos uniremos a seres iguais
a nós e reconheceremos por nós mesmos o que for estreme de impurezas. É nisso,
provavelmente, que consiste a verdade. Não é permitido ao impuro entrar em contato com o
puro. – Eis aí, meu caro Símias, quero crer, o que necessariamente pensam entre si e
conversam uns com os outros os verdadeiros amantes da sabedoria. Não é esse, também, o
teu modo de pensar?
Perfeitamente, Sócrates.
XII – Por conseguinte, companheiro, continuou Sócrates, se tudo isso estiver certo, há
muita esperança de que somente no ponto em que me encontro, e mais em tempo algum, é
que alguém poderá alcançar o que durante a vida constitui nosso único objetivo. Por isso, a
viagem que me foi agora imposta deve ser iniciada com uma boa esperança, o que se dará
também com quantos tiverem certeza de achar-se com a mente preparada e, de algum
modo, pura.
Isso mesmo, observou Símias.
E purificação não vem a ser, precisamente, o que dissemos antes: separar do corpo,
quanto possível, a alma, e habituá-la a concentrar-se e a recolher-se a si mesma, a afastar-se
de todas as partes do corpo e a viver, agora e no futuro, isolada quanto possível e por si
mesma, e como que libertada dos grilhões do corpo?
É muito certo, respondeu.
E o que denominamos morte, não será a liberação da alma e seu apartamento do
corpo?
Sem dúvida, tornou a falar.
E essa separação, como dissemos, os que mais se esforçam por alcançá-la e os únicos
a consegui-la não são os que se dedicam verdadeiramente à Filosofia, e não consiste toda a
atividade dos filósofos na libertação da alma e na sua separação do corpo?
Exato.
Sendo assim, como disse no começo, não seria ridículo preparar-se alguém a vida
inteira para viver o mais perto possível da morte, e revoltar-se no instante em que ela
chega?
Ridículo, como não?
Logo, Símias, continuou, os que praticam verdadeiramente a Filosofia, de fato se
preparam para morrer, sendo eles, de todos os homens, os que menos temor revelam à idéia
da morte. Basta considerarmos o seguinte: se de todo o jeito eles desprezam o corpo e
desejam, acima de tudo, ficar sós com a alma, não seria o cúmulo do absurdo mostrar medo
e revoltar-se no instante em que isso acontecesse, em vez de partirem contentes para onde
esperam alcançar o que a vida inteira tanto amara – sim, pois eram justamente isso: amantes
da sabedoria.

Por consequência, continuou, ao vires um homem revoltar-se no instante de
morrer, não será isso prova suficiente de que não trata de um amante da sabedoria, porém
amante do corpo? Um indivíduo nessas condições, também será, possivelmente, amante do
dinheiro ou da fama, se não o for de ambos ao mesmo tempo.

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